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    As duas mortes do Toni. Artigo de João Negrão sobre o assassinato de Toni, no Rola Papo

    JOÃO NEGRÃO - Nada justifica a postura dos

    representantes da UFMT que qualificaram o Toni como um indivíduo de má

    conduta.O Toni não era um bandido. Ele necessitava de tratamento para

    poder concluir os estudos e voltar para o seu país.

    LEIA A MATÉRIA DIRETO DA FONTE

    27/09/2011 - 20:45:00

    As duas mortes do Toni

    Por João Negrão, especial para o Maria Frô

    Quarta-feira, 21 de setembro de 2011, 19 horas, em Jackson, capital do

    estado da Geórgia, Estados Unidos, Troy Davis, um negro de 42 anos,

    recebeu a dose letal que o levaria à morte. Condenado por assassinato,

    Troy Davis deitou-se na maca para receber as injeções repetindo a mesma

    frase de 22 anos antes, quando foi preso e condenado: “Sou inocente”.

    Quinta-feira, 22 de setembro de 2011, por volta das 23 horas, em

    Cuiabá, capital do estado de Mato Grosso, Brasil, Tony Bernardo da

    Silva, um negro de 27 anos, africano de Guiné-Bissau, estudante de

    Economia da Universidade Federal, recebeu um pontapé na traquéia e

    morreu. O golpe culmina uma sessão de socos e pontapés desferidos por

    dois policiais e um empresário que duraria em torno de 15 minutos.

    Impossível não traçar um paralelo entre as duas mortes.

    A primeira foi uma condenação legal, nos moldes da justiça

    norte-americana, que todos conhecemos, empenhada a condenar negros,

    ainda que, como é o caso de Troy, haja evidências de inocência.

    Inclusive depoimento de outro preso assumindo a autoria do crime

    atribuído a ele. Em vão: Troy não recebeu perdão, não teve a clemência

    do governador da Geórgia e muito menos direito a recurso na Suprema

    Corte, dado às evidências de sua inocência.

    Difícil não imaginar que se trata de mais um caso de racismo como os

    que pontuam a crueldade do sistema jurídico e a sociedade racista dos

    Estados Unidos, especialmente nos estados sulistas como a Geórgia.

    Como é difícil não suspeitar que o caso do Toni foi uma expressão pura e cabal de racismo.

    Uma condenação prévia: um negro que adentra a uma pizzaria freqüentada

    por rapagões e moçoilas de classe média alta de Cuiabá, num bairro idem,

    embora predominantemente de repúblicas estudantis (o Boa Esperança fica

    ao lado do campus da UFMT) é um bandido. E ainda mais se este negro

    acidentalmente esbarra na namorada de um desses fregueses.

    Afinal, aquele não é um lugar para negros. Pior ainda. Que atrevimento!

    Um negro que deveria estar na senzala não pode adentrar a uma casa

    grande dos pequenos burgueses e tocar a mulher branca do sinhozinho.

    Então, eis seu crime. E está decretada a pena de morte. Não se sabe se

    os policiais e o empresário (sinhozinho) estavam armados. Se estivessem

    teriam desferido vários tiros? Tenho dúvida. Não sei se não preferiram

    mesmo usar como instrumentos de execução os socos e pontapés. Afinal,

    esta na moda uma das marcas da intolerância: matar a porradas negros,

    homossexuais e todos que esses “bad boys” não toleram por serem

    diferentes deles, supostamente bem nascidos, bem nutridos e crentes da

    impunidade. E com um ingrediente macabro: eles se divertem. E não raras

    vezes filmam e jogam em suas redes sociais.

    Seguindo o mesmo “modelito” que a imprensa em geral aplica a esses

    casos, todos ciosos a dar voz e vez aos assassinos da elite, tentam

    desqualificar o morto. Versões diversas surgem por todos lados dando

    conta que ele tinha passagens pela polícia, era drogado, perdeu a vaga

    no convênio da UFMT e outras informações nefastas. Como sempre trabalham

    com meias-verdades, com deturpações dos fatos e a omissão de outros.

    Essas versões são disseminadas por advogados e familiares dos

    assassinos, que encontram voz em veículos de comunicação que,

    deliberadamente ou não, as propagam sem questionar o contexto da vida do

    Toni e os depoimentos de amigos, colegas e ex-namorada, todos,

    unanimemente, testemunhando sua conduta passível e respeitadora.

    É compreensível que os advogados e familiares tomem tal atitude. Mas

    não justifica a postura dos representantes da Universidade Federal de

    Mato Grosso, que qualificaram o Toni como um indivíduo de má conduta.

    O setor da UFMT responsável pelo convênio entre o governo brasileiro e

    os governos dos países africanos de língua portuguesa, que permitem

    jovens daqueles países estudarem no Brasil, sempre foi omisso e racista

    com esses estudantes. Poderia desfilar aqui uma série de descasos,

    dificuldades criadas e declarações preconceituosas. Não é o caso agora.

    Por enquanto fica o registro de que o Toni sempre buscou

    desesperadamente lutar contra o vício do crack e encontrou pouco apoio

    na UFMT. Seus amigos se mobilizaram, igualmente seus colegas e

    professores. Mas a instituição se agarrou na burocracia. Por ele não

    conseguir mais freqüentar as aulas, o desligaram do convênio, pura e

    simplesmente. E ficou por isso. Contudo não pouparam declarações cruéis,

    insensíveis e até irresponsáveis na imprensa.

    Esta é a mesma instituição que ignora que drogas como o crack estão se

    proliferando dentro e na periferia do campus da UFMT do Boa Esperança.

    Foi ali mesmo que o Toni se viciou. Nas imediações da república em que

    ele morava, assim como nos corredores da UFMT, a droga e traficantes

    transitam livremente. Que providência a instituição tem tomado acerca

    disso? Prefere tapar os olhos e ajudar a condenar seus jovens alunos.

    Foi-se o tempo em que o romantismo e a rebeldia de fumar um baseado

    faziam parte do cotidiano universitário. Agora o ambiente universitário é

    um dos mercados de drogas pesadas, assim como seu entorno. E a tragédia

    do crack, a pior delas, bate à porta de todos nós. Meus amigos e

    colegas, muitos deles vivendo esse drama familiar, sabem do que estou

    dizendo. Acompanhei esses dramas quando morava ainda em Cuiabá.

    Eu mesmo o vivo bem de perto. Tenho um irmão que vive a perambular

    pelas ruas de Goiânia se consumindo pelo crack. Gilmar, um dos sete

    filhos adotivos de minha mãe, era um rapaz trabalhador desde criança.

    Estudou, casou, formou família. Suas três filhas e esposa não agüentaram

    viver aquela tragédia e o abandonaram. Desde então passou a viver nas

    cracolândias do bairro Vila Nova, na capital de Goiás.

    Minha mãe, já com seus 74 anos e morando agora em Goiânia, acompanha

    seu infortúnio e, dentro de suas limitações, nos mobiliza a todos para

    tentar salvá-lo.

    O Toni tentou sobreviver. Poucos meses antes de voltar para Brasília, o

    recebi na minha casa, a qual ele freqüentava com os demais estudantes

    guineenses. Minha mulher era amiga dele, chegaram de Guiné-Bissau

    juntos. Ele para curso Economia e ela, Publicidade. Éramos capazes de

    deixar nossa casa aberta para ele, junto com meus filhos. O Toni não era

    um bandido. Repito: era uma pessoa amável e respeitadora.

    Naquela tarde fria de julho e Cuiabá melancólica devido à carência de

    seu sol escaldante, o Toni chegou desesperado. Primeiro pediu dinheiro

    emprestado. Depois, muito envergonhado, chorou no nosso colo. Pediu

    ajuda, implorou para que afastássemos aquela sua vontade incontrolável

    de querer consumir a droga. Então começamos a mobilizar os amigos,

    colegas e seus professores. Ele necessitava de tratamento para poder

    concluir os estudos e voltar para o seu país.

    Dois meses depois voltei para Brasília. Mas acompanhamos daqui a vida

    do Toni. Ficamos sabendo que ele havia ido para o tratamento. Depois

    fomos informados que havia vendido tudo que tinha e foi obrigado a

    entregar toda a sua bolsa de estudos para os traficantes. Quando perdeu a

    bolsa, foi para a rua mendigar. Foi num desses momentos que entrou na

    pizzaria naquela noite do dia 22 de setembro.

    O Toni é filho de uma família de classe média alta em Guiné-Bissau. Seu

    pai é agrônomo e possui uma pequena fazenda. Idealista, sempre quis que

    os filhos tivessem boa formação para ajudarem no desenvolvimento do

    país. Tem irmãos que estudam ou estudaram na França, Inglaterra e

    Portugal. Parte da família fez carreira nas forças armadas, onde um tio

    seu é um dos comandantes.

    Certa vez o Toni foi flagrado pela polícia em Cuiabá carregando um

    botijão de gás que ganhou de um dos colegas, pois o seu ele havia

    vendido para comprar crack. A polícia o abordou, o levou preso, apesar

    de afirmar que o objeto era dele. Passou o dia inteiro na delegacia,

    jogado numa sala e só saiu de lá depois que acionou a Polícia Federal,

    jurisdição da qual estão os estudantes africanos.

    Aqui abro um parêntese. Não foram poucas as vezes que a UFMT acionou a

    Polícia Federal para perseguir os estudantes africanos que, por um

    motivo ou outro, não estavam freqüentando aulas ou haviam formado e

    ainda estavam no Brasil tentando pós-graduações ou empregos.

    Setores da imprensa de Cuiabá, motivados por advogados e familiares dos

    assassinos, utilizam este caso do botijão, entre outros sem gravidade,

    para propagar que o Toni tinha passagens pela polícia. Como se a tal

    “passagem” fosse uma sentença de morte.

    Antes de continuar, peço licença para contar duas histórias:

    Em 1980, um rapaz que faria 20 anos dali a poucas semanas, cursava

    Agrimensura na antiga Escola Técnica Federal de Goiás e fazia estágio

    numa cidade a 20 quilômetros de Goiânia. Numa tarde, como fazia todos os

    dias, entrou às 17 horas no ônibus que o levaria de volta para casa,

    quando dois policiais o abordaram, algemaram, jogaram no camburão e

    levaram para a delegacia. Lavraram um boletim e mal ouviram a versão do

    rapaz. Em seguida, para fazê-lo confessar que havia feito um assalto, os

    policiais deram-lhe tapas nos ouvidos, murros, beliscões no nariz, nas

    orelhas, cascudos e ameaçaram quebrar seus dedos com um alicate e

    queimá-lo com cigarros.

    As sevícias duram até que um dos policiais sugeriu ao delegado que o

    rapaz fosse levado para que a vítima identificasse o assaltante. Àquela

    altura a cidade inteira já sabia da prisão. Ao chegar à casa da senhora

    assaltada, de onde foram levados um televisor, aparelho de som e uma

    bicicleta do filho, o carro da polícia encontrou uma multidão que queria

    linchar o “bandido”. Os policiais com dificuldade abriram um corredor

    para a mulher chegar até o carro. Quando ela olhou pelo pára-brisa foi

    logo dizendo: “Não, não é este. O ladrão é branco!”.

    Em 2004, um homem de 44 anos foi abordado pela polícia próximo à sua

    casa. Estranhou o fato de os policiais o obrigarem a ficar ao lado da

    viatura, longe do seu carro. Então um dos policiais faz uma rápida

    revista e aparece com um revolver e um pacote do que seriam drogas.

    Imediatamente o homem protesta, denuncia a “plantação” e só não vai

    preso porque estava com a identificação de secretário-adjunto de

    Comunicação Social do governo de Mato Grosso e ameaçou denunciar os

    policiais, que imediatamente fugiram do local.

    O homem e o rapaz de 24 anos antes é a mesma pessoa: eu. Poderia aqui

    contar outras várias histórias de arbitrariedades e prisões às quais fui

    submetido. Por ser negro, tido como ladrão, drogado e traficante, tive

    passagens pela polícia. Infelizmente aquela piadinha infame que de vez

    em quando ouvimos por aí é de fato uma máxima entre policiais: “Preto

    parado é suspeito, correndo é ladrão”.

    Quantas passagens pela polícia justificam uma morte?

    Mereceria eu morrer por ter cometido o crime de ter nascido negro?

    Mereceria eu morrer pelo crime de provocar aos policiais a sanha

    assassina de quem ainda nos vê como escravos, como sub-raça, como seres

    desprezíveis?

    Mereceria eu morrer porque há cinco séculos retiraram meus antepassados

    da África, jogaram num navio negreiro, atravessaram o Atlântico, os

    leiloaram, os submeteram a ferro e fogo, os jogaram nos canaviais, minas

    e fazendas, os subjugaram nas senzalas, colocaram no pelourinho,

    humilharam, sugaram seus sangues e suores, para depois, com a abolição,

    os jogarem as ruas como se fossem animais, sem direito a dignidade?

    Deveria eu morrer por ser filho de Clarice Laura e José Orozimbo, neto

    de José e Regina e de Josefa e Pedro Alves, por sua vez netos e filhos

    de escravos?

    Este é meu crime?

    Por favor, se é este o meu crime, então que me matem! Mas me matem apenas uma vez. Não façam como estão fazendo com o Toni.

    Depois de ser trucidado pelos “bad boys da intolerância”, Toni corre o

    risco de ser massacrado, pisoteado, sangrando até a última gota da sua

    dignidade.

    PS: O corpo do Toni ainda está no IML de Cuiabá aguardando resultados

    de exames pedidos pelo delegado que acompanha o caso e a chegada da

    família para liberá-lo.

    Dona Cecília, mãe dele, me informou que um de suas irmãs, que é arquiteta na França, deve vir ao Brasil.

    A Embaixada de Guiné-Bissau em Brasília também está acompanhando o caso e prestando apoio à família.

    O governo brasileiro, por meio do Itamaraty, já se manifestou,

    repudiando o crime e pedindo desculpas à família e aos guineenses.

    Amigos e compatriotas do Toni estão se mobilizando em Cuiabá e aqui em

    Brasília, denunciando o assassinato e pedido para que seja tipificado

    como motivado por racismo.

    JOÃO NEGRÃO é jornalista em Brasília.

    Transcrito da Página do Enock

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    Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/noticias/as-duas-mortes-do-toni-artigo-de-joao-negrao-sobre-o-assassinato-de-toni-no-rola-papo/2851333

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